Número de transplantes em Minas pode superar o do ano passado, melhor índice da década
Incentivo do Governo do Estado, campanha Setembro Verde e queda na taxa de recusa têm impacto no número de doadores de múltiplos órgãos, índice que cresceu mais de 20% em 3 anos
A expectativa otimista está amparada pelos números. Considerando o atual cenário em Minas Gerais, com 727 transplantes de órgãos realizados até agosto e o número recorde do ano passado (1.067) – o melhor desempenho em dez anos – é possível que 2024 mantenha ou mesmo supere a performance de 2023, que teve uma média de 89 transplantes de órgãos por mês. Este ano, até agora, a média é de 90 cirurgias mensais.
“Acredito que vamos superar 2023, pois, a partir de junho deste ano, observamos o aumento da captação em relação ao ano anterior. Historicamente, o segundo semestre é melhor que o primeiro”, explica o cirurgião e diretor do MG Transplantes (MGTX), Omar Lopes Cançado. A instituição é vinculada à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig).
O aumento de doadores de múltiplos órgãos confirma essa tendência e indica um possível crescimento no número de doações e de transplantes realizados.
Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em Minas, em 2021, foram 199 doadores desse tipo; em 2022, subiu para 244 e, em 2023, cresceu ainda mais, totalizando 296 doadores. Some-se a isso o fato de que a taxa de recusa familiar, que era de 38,4% em 2022, caiu para 31,4% no ano passado.
Desempenho histórico
Essa trajetória de crescimento das doações de órgãos (e o consequente aumento das cirurgias para transplantes em Minas) é resultado de vários fatores que, juntos, contribuíram para o desempenho histórico este ano, que registrou 516 cirurgias de rim, 134 de fígado, 58 de coração, 15 de pâncreas/rim e quatro de pâncreas ao longo dos últimos oito meses.
Entre os motivos, estão os treinamentos em comunicação de situações críticas, que aprimoram a capacidade das equipes para conversarem com as famílias, e pela capacitação de médicos para o diagnóstico da morte encefálica – ambos realizados pela equipe do MGTX.
Outros fatores positivos são o incentivo às doações, instituído no final de 2023 pelo Governo de Minas, dentro da “Política Continuada de Ampliação à Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos”, e as campanhas permanentes de conscientização da população sobre o assunto – em especial o Setembro Verde – que reforça a importância de informar à família a decisão de ser doador.
Resultados a médio prazo
A expectativa é de que, a médio prazo, o incentivo financeiro do Governo de Minas, destinado aos hospitais do estado que aderirem à política continuada, leve ao aumento do número das Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTTs).
“Esperamos pelos impactos da política de incentivo às doações. O número de CIHDOTTs está progredindo nesse sentido, pois elas estão se organizando. Vale ressaltar que não são todos os hospitais que necessitam constituir CIHDOTT. Isso depende do porte da instituição e do número de óbitos ocorridos anualmente”, acrescenta Omar Cançado.
Para ampliar os resultados positivos experimentados nos dois últimos anos, cabe, ainda, melhorar a capacidade dos hospitais para realizar o protocolo de morte encefálica, de modo a aumentar as notificações.
Mudança de cultura
A lista de espera por transplantes em Minas tinha quase 8 mil nomes até agosto (7.811). Desse total, 3.846 aguardavam por órgão e os outros 3.965 por córnea. Em relação a órgão, a maioria esperava por rim (3.679), seguido por fígado (80) e coração (22).
O diretor enfatiza a importância da doação como meio de salvar vidas. “Devemos mudar a cultura da população, e isso leva tempo. A educação para a importância do ato de doar órgãos e tecidos deve vir desde a infância, para que, no futuro, todos sejam doadores e compreendam o significado dos transplantes para a manutenção da vida de milhares de pessoas em todo o país”, pontua Omar Cançado.
Segunda chance
O servidor público Fábio Rodrigo de Deus, 43 anos, casado, relata as circunstâncias que levaram ao transplante de coração de sua única filha, Maria Eduarda, de 16 anos.
Desde a infância, Duda sempre foi uma menina muito ativa: praticava natação, ginástica artística, frequentava aulas de dança e estava iniciando na musculação. No entanto, as múltiplas atividades da filha foram interrompidas há cerca de dois meses, depois de ela ter se recuperado de um quadro de dengue, em fevereiro deste ano.
Com sintomas como perda de visão periférica, desconforto abdominal e mal-estar, Maria Eduarda acabou diagnosticada com um quadro gravíssimo de insuficiência cardíaca. Em 29 dias, o pai da jovem viu todas as certezas serem desconstruídas diante da possibilidade de perder a filha. “Ouvir que a única solução para a minha filha seria o transplante foi devastador”.
Para alívio da família, o transplante foi viabilizado em tempo recorde.
“O tempo de espera pelo transplante foi muito curto, fomos agraciados com uma segunda chance em oito horas – entramos na lista de espera no dia 3/5 e no dia seguinte a cirurgia foi realizada”, conta.
O sentimento de esperança tomou conta da família.
“Quando reencontrei a Maria, existia vigor novamente. A palidez já não a acompanhava, estava corada, a boca rosada e o monitor cardíaco em um ritmo mais compassado e estável. Um sentimento de leveza tomou conta de mim, era possível respirar um pouco mais aliviado”, lembra o pai da jovem.
Gratidão
Fábio afirma que é impossível permanecer da mesma forma depois de tudo que viveu. “A vida é inconstante e incerta. Quando passamos por algo assim, chegamos à conclusão de que faltou abraço, faltou carinho, faltou olhar, faltou o eu te amo. Com o transplante da minha filha, consegui perceber o amor das pessoas e ter esperança novamente em um mundo melhor.”
O pai afirma ser eternamente grato às pessoas que ajudaram na recuperação da filha: a equipe médica e, especialmente, ao doador e sua família.
Ele ressalta que, até então, a doação de órgãos e a realização de transplantes eram temas que sempre ouvia falar por meio do noticiário, de filmes ou novelas, mas que nunca teve contato com quem passou por um transplante.
“Somente agora compreendo o quão complexo e importante é esse tema, que deve ser tratado de forma cotidiana. Muitas famílias não sabem que seus entes gostariam de ser doadores e muitas pessoas têm receio de se declarar doadores devido à falta de conhecimento sobre o assunto”.
E diz que vai replicar a cultura da doação. “Deve ser muito difícil, no momento da dor pela perda, pensar no outro e em dividir e ajudar. Mas saber que, aquele que está partindo pode restaurar a vida de até oito pessoas, pode trazer um pouco de conforto”, pondera Fábio.
Longevidade
O consultor de projetos Alexandre Amador de Souza Soares, 50 anos, vive há 27 anos com um rim transplantado. As quase três décadas pós-transplante lhe conferem o título de um dos mais longevos transplantados de rim em Minas Gerais.
Após oito meses de hemodiálise, aos 23 anos, Alexandre foi submetido à cirurgia para receber o órgão doado por sua mãe. Ele conta que nasceu prematuro e que ao longo do tempo seus rins “pararam”.
“Tive depressão e chorava todos os dias, pois era muito jovem e o mundo caiu quando descobri que tinha que fazer hemodiálise e de que precisava de um transplante renal”, lembra.
Hoje, ele mantém uma rotina ativa. “Faço academia, viajo, cuido do meu corpo, tomo a medicação e faço todas as revisões médicas. Como consultor, consigo ser produtivo, implemento vários projetos que impactam a vida das pessoas e me sinto vivo e útil”.
Alexandre acredita que a doação de órgãos é um gesto de extrema generosidade e solidariedade. “Busco conscientizar minha família, amigos e comunidade. Durante o Setembro Verde, participo ativamente dando palestras. Acredito que posso inspirar outras pessoas a refletirem sobre a importância de serem doadores, contribuindo para salvar vidas”, sublinha.
Qualidade de vida
A professora aposentada Gislaine Vieira dos Santos, 67 anos, submetida ao transplante de rim em 2008, após anos de hemodiálise.
“Eu imaginava que somente pessoas que tivessem condições financeiras poderiam fazer o transplante. Sempre segui as orientações médicas e ia levando a vida, e fui chamada. Foi emocionante, quase não acreditei. É uma sensação maravilhosa saber que o órgão de outra pessoa me deu qualidade de vida. Sou muito grata”.
Doença silenciosa
Diagnosticado com esteatose hepática em 2013, o servidor público aposentado Magno Elisiário Ferreira, 68 anos, vem a Belo Horizonte regularmente para o acompanhamento pós-transplante.
Mesmo doente, Magno diz que não sentia nada, pois a esteatose hepática é uma doença silenciosa que atinge cerca de 30% da população adulta e causa o acúmulo anormal de gordura nas principais células do fígado. Desse total, aproximadamente 15% evoluem para um quadro mais grave de inflamação do fígado, desenvolvendo cirrose hepática ou até mesmo câncer. Magno apresentou cirrose.
Ele foi submetido ao transplante no dia 14/6 deste ano. Seu nome foi incluído na lista de espera quatro dias antes. Enquanto aguardava, pensava: “seja o que Deus quiser”, pois sabia que o processo de espera por um transplante poderia ser demorado e tinha clareza dos riscos que corria.
Cafezinho
“Agora, estou bem. As pessoas comentam que nem parece que fiz transplante. Antes, eu dormia mal e minhas pernas estavam sempre muito inchadas. Depois do transplante, mudamos a forma como encaramos a vida. Sempre via com otimismo a questão da doação. Eu era doador de sangue e costumava dizer que, quando morresse, doaria todos os meus órgãos e tecidos”.
Magno revela que aproveita as oportunidades para falar sobre a importância da doação. “Até num cafezinho, se senta alguém do meu lado que se disponha a me ouvir, falo sobre transplante. Peço que doem pelo menos sangue, quando não consigo sensibilizá-las para que se declarem doadores de órgãos e tecidos, atitude que salva vidas”, finaliza.